8 de dezembro de 2016


O técnico, o personagem Renato e a ferida aberta

1995. Um dia após o histórico gol de barriga na final do Carioca, Renato Gaúcho topa o desafio. Veste o manto, pega o cetro e põe a coroa sobre a cabeça. Literalmente, vestido de Rei diante de lentes de um jornal carioca. O Rei do Rio, posto disputado em briga midiática com Romário, do Flamengo, e Túlio, do Botafogo, que teve caráter épico mesmo em tempos sem internet e redes sociais. Era o auge do personagem fanfarrão de Renato Portaluppi. 

2008. Vasco em meio à maior crise da história, lutando contra uma luta quase perdida contra rebaixamento no Brasileiro. Em uma manhã no Vasco-Barra, o técnico Renato Gaúcho conversa com um fisiologista, que tem um papel em mãos. Ali, listados, os pesos dos jogadores. Edmundo, craque da companhia, tinha três quilos a mais do ideal. Outros jogadores contavam peso a menos. Renato termina a conversa, reúne o grupo no gramado e, nervoso e com muitos gestos, cobra o cuidado com o corpo, explica o impacto no desempenho da equipe. Até Edmundo, antes revoltado ao exibir a barriga a todos da comissão técnica, ouvia calado. Era o técnico Renato, preocupado com detalhes da profissão pós-jogador. 

2016. O personagem fanfarrão se une novamente ao técnico com a conquista da Copa do Brasil. "Futebol é como andar  de bicileta. Não se desaprende. Quem não sabe, tem de estudar e ir para a Europa mesmo", alfineta. O caos está instaurado. Renato, ao seu estilo, deu o recado que gostaria. Reação a uma ação. E reabre a ferida que causa melindres no futebol brasileiro. Estudiosos versus boleiros. Conhecimento versus desprezo pela qualificação. O empobrecimento do debate. Um mau exemplo para o dia a dia dos brasileiros. Renato não é Guardiola e nem se propõe a ser. Tem seu estilo, sua maneira de entender e lidar com o futebol. Rema contra a maré vigente num panorama em que técnicos medalhões perdem espaço para novos nomes. É a troca de um ciclo. Por isso, vê-lo levantar um título causa rusgas. Não é certo, nem errado. Apenas uma das várias maneiras de entender futebol. 

O título de Renato, o Portaluppi, com o Grêmio escancara o debate no futebol brasileiro não apenas pela provocação. Ídolo e por mais de dois anos longe da área técnica, ele substituiu Roger, um dos nomes que mais ventilam novidades no futebol brasileiro e que carrega o adjetivo de "o estudioso". Foi o contraponto imediato. Tem gosto pelo papo com os jogadores, faz mais o estilo boleirão. E o time gremista, que já apresentava sinais de desgaste, melhorou. Mesmo com um boleiro após o estudioso. Renato, inteligente, fez ajustes finos, manteve boa parte do trabalho de Roger. É um time mais forte do que era na defesa, mais incisivo no momento de buscar o gol, mas mantém a troca de passes, a paciência no entorno da área adversária. Controlou o grupo, recuperou jogadores. É um mérito. E, uma vez mais, derruba a tese de um caminho único no futebol. 

Mas a venda de imagem de Renato como um simples motorista que já pegou o bonde andando e o tocou para a taça mesmo sem ter qualidade ou ser capacitado para tal o incomodou. As críticas de um técnico que passou o tempo na praia, também. Daí a reação fanfarrona de Renato. É o jeito dele. De quem já disse que iria brincar no Brasileiro. De quem disse que jogou mais do que Cristiano Ronaldo. 

Renato é um dos últimos românticos de um futebol brasileiro que mora no ideal de uma geração de torcedores. Gosta dessa imagem. Entende como estilo de vida, se propõe como um símbolo. É da época de provocações, não das frases sobre três pontos e elogios mútuos blindados por assessores. Mas é inteligente. Se nutrisse tanto desprezo por estudo e análise no futebol talvez destruísse o trabalho de Roger por completo. Não o fez. Manteve parte, acrescentou suas ideias. Fez do Grêmio campeão nacional depois de 15 anos. Aproveitou o momento, tocou na ferida e se manteve fiel à própria biografia. Usou o personagem. E sabe que há espaço para todos. Mais de 20 anos depois, Renato novamente vestiu a fantasia de Rei. Para chegar à taça, obviamente mostrou a faceta de um técnico que se preocupa até com o peso dos jogadores. Provocou e se divertiu. Foi técnico. Foi campeão. Foi o personagem Renato Gaúcho. 

1 de dezembro de 2016


De Medellín a Chapecó, a materialização do clichê

Não é só futebol. As luzes na arquibancada do estádio Atanasio Girardot inflaram o sentimento que varreu o continente sul-americano diante de uma tragédia que sufocou gargantas e provocou lágrimas coletivas como em raras ocasiões. O abraço dado pelo Atlético Nacional e sua torcida é daqueles maternais, de quem diz que está tudo bem e nada vai acontecer. Afagos fazem bem para suprimir a dor. Em Medellín e Chapecó, o futebol transbordou fronteiras para nos desarmar. 

Somos o que pretendemos ser. Quem buscamos ser. A linda cerimônia dos colombianos indicou que podemos, sim, sermos solidários. Sermos bons, mesmo. Importarmo-nos uns com os outros. Ignorarmos diferenças. Adversários não são inimigos. Foi o que espelhou o futebol em uma semana que começou com a alegria do título do Palmeiras depois de 22 anos, presenciada pela própria Chapecoense, e seguiu com a perda de tantos sonhos e histórias em uma montanha colombiana. Na dor, o futebol seduziu até quem não liga para o esporte. Instigou lágrimas e reflexões. Não é só futebol.

Em Chapecó, não é mesmo. O clube se confunde com a cidade e torna a relação entre jogadores e cidadãos mais intimista. O sofrimento de perdê-los de forma tão trágica parece ser maior. A Arena Condá, de novo, vestiu-se de verde para homenagear quem tanto a honrou. Em Medellín, o laço de solidariedade pareceu se completar. Um povo distante que abraçou a dor como sua. Homenageou mortos como seus. Palavras afagaram, gestos emocionaram. E a barreira da linguagem se dissipou com o coro de "Vamos, vamos, Chape!" ecoado em uma arquibancada colombiana, que encharcou o gramado de flores brancas. Não é preciso final alguma. Não é preciso entender regras. Na mais bela homenagem do esporte, o Atlético Nacional e sua torcida tiveram sua mais grandiosa conquista. Amenizaram dores. Afagaram corações. Materializam o velho clichê. Não, não é só futebol. Gracias, Colômbia.  

24 de novembro de 2016

O técnico Rogério, o contrassenso e o risco

Inegável que há uma mudança em curso no futebol brasileiro na avaliação de técnicos. Profissionais mais qualificados, considerados preparados e atualizados com novas ideias que bafejam sobretudo no continente europeu tomaram à frente na preferência de público, crítica e até de cartolas. Basta observar novos perfis que já comandam grandes clubes. Zé Ricardo no Flamengo, Jair Ventura no Botafogo, Roger até pouco tempo no Grêmio. Todos recebidos como boas e revigorantes ideias em um ambiente já enfadado de velhos medalhões. A chegada de Rogério Ceni ao comando do São Paulo menos de um ano após a própria aposentadoria é, portanto, um contrassenso. 

Impossível questionar a capacidade de Rogério para leitura de jogo, compreensão de vestiário, liderança. Elementos fundamentais para a nova profissão. O ex-goleiro tem tudo isso. Mas ainda não é técnico. Logo após pendurar as luvas, o ex-camisa 1 embarcou na nova onda do futebol brasileiro. Inteligente, compreendeu o momento. Para ser técnico é preciso qualificação além de história, experiência na carreira como jogador, entendimento de vestiário. Ceni sabia disso e buscou se aprimorar. Viajou à Europa, frequentou clubes ingleses, fez cursos disponíveis e se encontrou com Jorge Sampaoli. Tudo amplamente divulgado, como quem mandasse sinais. A ideia de Rogério Ceni, o técnico, passou a ser digerida por todos. Estudou, buscou entender métodos para pôr em prática em um futuro. Sim, ele seria técnico. Mas não já. Não em tão pouco tempo de qualificação. A imagem do ídolo se sobrepôs ao tempo. Veio a surpresa. 

Mesmo com toda a bagagem, talvez fosse mais interessante para o próprio Rogério começar a trilhar a nova profissão em divisões de base, talvez em um clube do interior ou como auxiliar do próprio São Paulo. Mais um tempo de estudos. Zidane, gigante da história do futebol, passou pelo time B do Real Madrid como fez Guardiola no Barcelona. Trilharam a realidade antes de se tornarem grandes em uma nova profissão. Mas ser o maior ídolo da história de um grande clube custa caro. Traz vaidade. Tem um peso. E apressa o rolar dos dados. Em um clube acostumado a ser referência de planejamento e que há anos já encontra dificuldades para lidar com um presente envolto em escândalos nos bastidores e insucessos em campo, o retorno de Rogério tem um ar messiânico e um caráter político evidente para eleições tão próximas. Um risco para o próprio. A euforia de torcedores já é perceptível. A autoconfiança de Rogério para iniciar uma profissão em um imenso desafio, também.  

É possível que daqui a alguns meses já observemos um São Paulo organizado, com bom desempenho, novas ideias e o futebol brasileiro ganhe um ótimo técnico. Rogério precisará de tempo, componente geralmente não dado a chegadas messiânicas. Mesmo com todo conhecimento no futebol, Ceni terá de lidar com novas decisões. Talvez desgaste com algum jogador insatisfeito, cobranças da arquibancada diante de fases ruins, vítima de brigas políticas. Cenários inéditos no papel de um comandante aos olhos do público. No Morumbi, Rogério Ceni é enorme e suas costas são grandes. Mas o terreno é arriscado diante de um futebol que cada vez mais exige preparação, estudo e experiência para tomar decisões. Encarar fracassos e dali construir sucessos. Rogério começará do zero. O desafio é grande, ao seu gosto. O risco, também. 

20 de novembro de 2016


O saldo rubro-negro de 2016 acende a luz amarela

Mesmo com o frustrante empate em 2 a 2 com o Coritiba no Maracanã é muito provável que o Flamengo encerre o Campeonato Brasileiro entre os três primeiros colocados, com vaga garantida na fase de grupos da Libertadores de 2017. Ainda assim, o saldo de 2016 será ruim. Isso mesmo. Ruim. A patinada na reta final da maior competição nacional e a consequente saída da briga pela taça não seriam, por si só, motivo para análise negativa. Mas o pacote de todo o ano, com seguidas eliminações, é forte e puxa a balança para baixo. Acende a luz amarela. Diminui a paciência. Em 2017, o tom de cobrança de todos os lados, torcida, imprensa e do ambiente interno do clube tende a aumentar. Mas há, claro, o que peneirar para azeitar o carro quando parado na oficina. 

Talvez seja o maior aprendizado que o Flamengo, aluno insistente nos erros. Não trocar peças com o carro em pleno andamento. Assim como em 2015, o clube rubro-negro repetiu a dose em 2016. Houve, claro, erro de planejamento. O elenco precisava de zagueiros. Não os contratou a tempo da estreia no Brasileiro e, de quebra, viu Wallace abandonar o clube na véspera, tendo de recorrer ao então dispensado César Martins. O campeonato cobra erros tão primários como o de escalar zagueiros recém-saídos dos juniores em jogos profissionais tão exigentes. Cobra a entrada do principal jogador do time, Diego, com vários pontos já disputados. Cobra a indefinição do técnico quando Muricy Ramalho já havia abandonado o barco por motivos de saúde. Este último, um acerto por linhas tortas. 

Zé Ricardo deve permanecer no Flamengo em 2017. É compreensível que, estreante nos profissionais, tenha errado na reta final da competição. Mostrou-se inseguro ao tentar diversificar o esquema tático, geralmente preso ao 4-2-3-1 com os valentes pontinhas, conhecido de cor pelos adversários. Apostou errado em veteranos como Sheik. Investiu pouco na dupla Guerrero e Leandro Damião e nos estrangeiros Cuellar e Mancuello. Mas o técnico, por si só, tem saldo positivo. Soube formar um time competitivo em grande parte da competição, administrar jogadores cascudos. Há margem para crescimento, maior cancha e liberdade para diversificar o esquema no início da temporada, sem grande pressão como em um campeonato de pontos corridos. Fez um bom trabalho. Merece continuar e receber peças mais qualificadas para forjar uma equipe competitiva e com bom desempenho e resultados. E ser, claro, cobrado.

A bússola do desempenho financeiro do clube e sua recuperação indicam para um céu azul de austeridade, mérito de um trabalho constantemente elogiado de Bandeira de Mello e seus pares. Mas nenhum céu de brigadeiro fora de campo consegue se equilibrar sem o resultado esportivo. 2016 seria o ano dourado do futebol. Passou longe. O time ficou pelo caminho no Carioca para o rival Vasco. Caiu na semifinal da Primeira Liga com time misto diante do Atlético-PR. Deu vexame na segunda fase da Copa do Brasil contra o Fortaleza. Passou vergonha diante do inexpressivo Palestino na Copa Sul-Americana. O fardo é grande para quem investe tanto e colhe tão pouco. 

A ideia propagada na Gávea atualmente é de que 2017 será um ano com maior potencial para glórias. A torcida, compreensiva desde 2013 com o quadro de recuperação financeira do clube, já mostra ansiedade. A paciência diminuiu com o aumento de fracassos em campo. A margem para manobra será menor. Rodrigo Caetano e Flávio Godinho, diretor e vice de futebol, serão mais cobrados a conduzir o clube e seu potencial de investimento a voos verdadeiramente altos. A compreensão poderá virar pressão. A boa campanha rubro-negra no Brasileiro tem méritos de Zé Ricardo em extrair ao máximo de jogadores medianos. Pará, Vaz, Gabriel, Fernandinho e até o contestado Márcio Araújo viveram ótima fase. Mas o declínio individual de cada um proporcionou a queda vertiginosa do desempenho da equipe. O futebol do time diminuiu, os resultados se foram. O gosto de fim de ano é amargo. O elenco é bom, mas há buracos.

Ao indicar uma renovação de contrato por duas temporadas com o Márcio Araújo, por exemplo, a diretoria indica ainda flertar com águas turvas para o futuro. Não pela simples aversão da torcida ao camisa 8. Mas o volante é limitado tecnicamente, embora vigoroso. É pouco para quem sonha alto. Para quem investe alto. A mesma situação se aplica a nomes como Gabriel, Fernandinho, Rafael Vaz. São jogadores para composição de grupo. A ambição é entendida pelas ações da diretoria. Reforçar as pontas, a zaga, trazer um primeiro volante de maior qualidade, dar um companheiro a Diego na criação de jogadas. Resta também definir um estádio para não ser um eterno peregrino que se comprometa fisicamente no fim da temporada. 

A lista de tarefa é grande demais para quem parece tentar apontar um lugar entre os três primeiros como sucesso. É necessário reconhecer que 2016 esteve longe disso. Houve méritos no Brasileiro, mas o conjunto de ações falhou. Na reta final, o time patinou. Não é por acaso. O saldo ruim acendeu a luz amarela. O Flamengo de Bandeira ainda espera para dar o seu grande salto dentro de campo. 

27 de outubro de 2016


A obsessão míope por uma vaga

Bastou a canetada em conjunto de Conmebol e CBF para os clubes brasileiros sorrirem de orelha a orelha. Mais duas vagas para a Libertadores foram encaixadas na Série A. G-4 virou G-6. E aumentou o dilema de quem lutava pela Copa do Brasil: por onde a chegada à Libertadores seria mais fácil? O discurso que já ganhava força entre clubes, diretoria, jogadores, imprensa e até torcida aumentou os contornos de obsessão. No Brasil, vale tudo por uma vaga na Libertadores. Até contemporizar título. 

Conquistar a Copa do Brasil deve ser motivo de orgulho para o vencedor. Mais um trofeu nacional na galeria, mais um momento inesquecível para os torcedores, mais um capítulo na história. Talvez renda, em alguns casos, estrela na camisa. E, por fim, uma vaga na Libertadores. A ordem, no entanto, é inversa. A Copa do Brasil é vista como o melhor atalho para a Libertadores. Como se uma simples vaga ao maior torneio sul-americano superasse um trofeu. A obsessão causa miopia. E vira muleta. 

No próprio Campeonato Brasileiro muitos clubes voltaram à luta já abandonada por uma vaga na competição internacional. Teriam, ali, um sentimento de dever cumprido no ano. Não foi campeão, não teve uma campanha digna do investimento e da história, mas conquistou uma vaga. Supervalorização. Vá lá que não se pode vencer sempre, mas para o Corinthians, atual campeão brasileiro, o sexto lugar neste ano e a conquista da vaga seriam pouco. Ninguém preenche a galeria de trofeus e dá aos torcedores momentos inesquecíveis com a quantidade de vagas em Libertadores conquistadas. Simbolicamente será sempre menor do que um título. Política e financeiramente, a Libertadores nem chega a ser tão rentável. 

Pelos números mais recentes, a cada jogo a competição sul-americana paga 450 mil dólares, cerca de R$ 1,4 milhão. Na fase de grupos, com seis partidas garantidas, o valor alcançaria R$ 8,4 milhões. Em previsões otimistas, o campeão sul-americano talvez alcançasse um montante próximo dos R$ 18 milhões. Apenas com a participação nos Estaduais, os clubes paulistas embolsam, cada um, R$ 17 milhões em cotas de tv. Os cariocas, R$ 15 milhões no novo contrato oferecido pela Globo. No Brasileiro, Corinthians e Flamengo levam cada um mais de R$ 100 milhões para casa por ano pelos direitos de transmissão. É praticamente um terço de suas receitas anuais. Ainda que em crise econômica, o Brasil mostra mais condições de manter jogadores de maior nível do que os vizinhos sul-americanos. 

Poderia ser a liga mais famosa das Américas, ganhar corpo politicamente e, sim, pleitear por uma Libertadores ainda mais forte. Mas parece, por enquanto, impossível. A vaga vale mais do que taça e do que o campeonato nacional. Discurso encorpado por todos que circundam o universo da bola. Clubes, jogadores, imprensa, torcedores estão viciados nele. Culpa da míope obsessão por uma vaga. 

24 de outubro de 2016


Passo, descompasso: a perda da passada do Fla no Brasileiro

Passo. Maracanã lotado, torcida ansiosa, mosaico que inunda a arquibancada de vermelho e preto. A união, enfim, estava refeita depois de tanto tempo de espera. Flamengo e a grande Nação. Assim que a escalação ganhou rádios, tvs, internet e redes sociais, o torcedor na arquibancada vislumbrou ideia nova de Zé Ricardo. Emerson, o Sheik, e Mancuello como titulares. Aumento de troca de passes, posse de bola, entendimento. Fim dos pontas, do jogo que força velocidade e cadece de pensamento. Descompasso.

Não deu nem tempo. Com poucos minutos de jogo a torcida já avistou da arquibancada que o ritmo da equipe não batia com o esperado. Era o mesmo esquema de sempre. Mas com Sheik, na direita, e Mancuello, pela esquerda. Sem pernas para marcação. Sem a velocidade para o ataque. Não deu mesmo tempo. Diante de um Flamengo que ainda tentava se encontrar no jogo e reencontrar no campeonato, Guilherme aproveitou o enorme espaço, a falta de pressão e arriscou marotamente um chute rasteiro. Muralha pulou. Faltou um passo. A bola beija o pé da trave e escorrega, marota, no fundo do gol. Descompasso. 

Passo. A torcida entende. A razão da festa era a união dela com o time. Cabia a ela empurrá-lo. Ela tenta, puxa cânticos, ameaça pulsar. Mas o time, morno, não a faz ferver. Troca passes com a tranquilidade de quem não tem a pressão de poucas rodadas para seguir - e ultrapassar - o líder. Guerrero briga, mata lançamentos ferozes no peito. Mancuello cai para a direita, Jorge ocupa o meio e entrega a direita corintiana para Fagner, às vezes Romero, quem sabe Rodriguinho. Flamengo em descompasso. Longe da característica que o fez arrancar na tabela, passa a alçar bolas na área. Cava faltas. Quer o jogo aéreo que já o salvou nas partidas mais recentes. Consegue. Guerrero, impedido de forma obscena, toca de cabeça para o gol. A arbitragem tira o descompasso. Tudo igual.

De passe em passe. O Corinthians chega, troca posições, coordena o ataque, ameaça. Guilherme encontra Muralha um passo à frente e tenta o gol de cobertura. Por pouco. A arquibancada treme. Sente o Flamengo no ritmo lento que o condenou em partidas anteriores. Parece faltar o espírito necessário. Jorge se arrasta pelo lado esquerdo. Pará é reticente pela direita. Arão não sabe ocupar seu espaço. Perde-se. Diego retorna, busca a bola, gira o jogo. Passe, passe, passe. E descompasso. Rodriguinho tabela com Fagner pelo meio e encontra Romero arrancando na direita. Entrada na área, bola rolada para trás, na medida. O corta-luz de Guilherme acerta o passo. Rodriguinho, na rede. Arquibancada e time não se entendem rumo ao intervalo. Total descompasso. 

Sem Mancuello e com Fernandinho, Zé Ricardo mantém o esquema e tenta afiná-lo. Precisa da vitória. Para manter o passo do campeonato. A derrota parcial era assustadora. Arquibancada e time voltam a acertar o passo. O grito acorda o time, que se joga à frente, tentando intimidar o adversário. Bola no Fernandinho pela esquerda. Duelo com Fagner. Ele tenta o drible, arrisca jogar a bola na área. Não tem espaço. Faltam organização, criatividade, aproximação. Haja espaço. A falta de ideias leva à bola aérea. É num escanteio de Diego que Guerrero aproveita a sobra na pequena área e toca de cabeça. Tudo igual de novo. Passo, passo, passo. Não se sabe mais o ritmo de um Flamengo em descompasso. 

O time busca o abafa. Bolas alçadas na área. O Corinthians se segura, tem contra-ataques e busca o desafogo com Marlone. Mas Guilherme é infeliz e recebe o vermelho. Dá campo para que o Flamengo acerte o passo. O coração da arquibancada, acelerado, não acompanha de forma uníssona. Vive entre a euforia e o desespero. Sabe da importância dos três pontos. A equipe rubro-negra tenta a pressão final. Puxa o fôlego. Sheik, na ponta direita, avança com o que pode e sobrecarrega Pará. Arão já não se entende e deixa o campo para a entrada de Damião. A ansiedade domina o time. Que se perde nos passos. Sheik avança pela direita e cruza na mão de Walter. Guerrero, sozinho de cabeça no meio da área, toca para fora. De novo Sheik, na ginga, tira o rival e bate forte para correr para o abraço. Puro descompasso. 

Passo. O jogo termina, a arquibancada entende o esforço. Aplausos. Desorganizado, com uma nota só, a equipe deu o que podia para tentar a vitória. Foi pouco. Com já fora diante de São Paulo e Internacional. O jogo rubro-negro empobreceu. Do chão saiu para o alto. Viciou-se em pontas rápidos, com pulmões para atacar e defender. Não se entende mais com tanta facilidade. Zé Ricardo terá de tirar o coelho da cartola e trocar o pneu do carro em movimento. Mudar para reviver. Voltar a acertar o passo. Agora o time está a seis pontos de distância para o líder. Tem de olhar para baixo e proteger a vice-liderança na próxima rodada. Ousar. Para retomar a passada do Brasileiro a seis rodadas do fim. 

21 de outubro de 2016

Legado rubro-negro

Os pouco mais de 54 mil ingressos esgotados em poucas horas para o retorno do Flamengo ao Maracanã, diante do Corinthians, no domingo, indicam a saudade que a maior torcida do Brasil tinha de embalar o seu time de perto. Mas o período do Flamengo longe do Rio de Janeiro indica ainda mais. Aponta para um legado que o clube rubro-negro certamente irá se orgulhar por anos. A reafirmação, a olhos vistos, da abrangência nacional de sua massa. Não basta saber. Foi preciso senti-la. 

Não que a ocupação além das fronteiras seja grande novidade. A velha máxima de que o Flamengo carrega torcida para onde vai é verdadeira. Mas em 2016 houve diferença. Foram 15 jogos como mandante no Campeonato Brasileiro longe da capital. 11 vitórias, dois empates e duas derrotas. Em nenhum momento o time rubro-negro pôde recorrer ao Maracanã, recolher-se na toca para juntar forças. O sentimento rubro-negro esteve espalhado. E foi testado à exaustão. Exigiu regularidade. Longe do Rio, o Flamengo mostrou força difícil de ser comparada no futebol brasileiro.

Afinal, qual clube manteria uma média de quase 20 mil torcedores por jogo sem disputar uma partida que fosse em casa? Tarefa dura. Pois foi o que o Flamengo fez. 298.667 torcedores pagaram para assistir aos 15 jogos da equipe como mandante no Campeonato Brasileiro. R$ 17,3 milhões foram arrecadados com tamanha paixão. Números que mostram o potencial de alavancar multidões. Não é da boca para fora. O apelido carinhoso de Mais Querido tem sentido. Tem gosto. Tem cheiro. 

Aliado à eficiência técnica. Logo no ano em que foi exilado do Maracanã, o Flamengo arrancou a sua campanha mais sólida na história dos pontos corridos. O fator casa, claro, foi fundamental. De mala e cuia, o time percorreu o Brasil em busca de pontos. E fez de Cariacica, no Espírito Santo, o seu porto seguro. Cinco das 11 vitórias no Campeonato Brasileiro aconteceram nos cinco jogos no Kleber Andrade. Foi o rubro-negro capixaba quem empurrou o time para triunfos no apagar das luzes contra Ponte Preta e Cruzeiro. Onde faltavam pernas ou técnica, veio o sopro da arquibancada. Raça, amor e paixão. 

De tão nacional, o Flamengo se deu ao luxo de invadir um estado que conta com quatro clubes gigantes e, ainda assim, lotar estádio. Em pleno Pacaembu, no coração da capital paulista, mais de 50 mil rubro-negros pagaram para assistir aos jogos diante de Figueirense e Santa Cruz. Numa mesma rodada, os cariocas levaram ao estádio mais torcedores do que o Corinthians, rival na guerra das massas pelas arquibancadas brasileiras. Não é pouco. Foi muito. É, ainda, bem simbólico. 

Em um verdadeiro tour nacional, o Flamengo ainda arrastou torcedores em Brasília e Natal. Verdade que teve Volta Redonda, nos três primeiros jogos, como o porém na caminhada, com pouco mais de 16 mil torcedores somados. Número desprezível diante do que a festa do AeroFla, por duas vezes, promoveu em embarques do elenco. Neste domingo, as arquibancadas rubro-negras do Brasil devolvem o time ao pulsar do Maracanã ainda na briga pelo título. Quatro pontos atrás do Palmeiras a sete rodadas do fim. A casa estará cheia. Pela Nação. Nunca um apelido foi tão autoexplicativo. Que legado. 

20 de outubro de 2016

O orgulhoso Botafogo

O botafoguense puxa a tabela do Campeonato Brasileiro, confere os números, abre um sorriso e relaxa. Inquieto, abre de novo, constata a campanha do time, decora cada item, suspira e enche o peito. Está orgulhoso. Viaja no tempo, pensa no fim de 2014 e olha para o céu. Jamais duvidou. Mas houve quem o fizesse duvidar de seu orgulho. Rebaixado com uma rodada de antecedência, o torcedor do Botafogo tentava entender por que estava condenado por um crime que não havia cometido. Era o papo dos bares, a provocação dos rivais, a resenha da tv. O clube estava decretado a hibernar. Glorioso que só, o Botafogo disse não. Olhou para a própria grandeza e faz de sua torcida a mais orgulhosa do futebol brasileiro no momento. Vale muito. 

Tolos os que disseram que caberia ao clube um ostracismo semelhante ao do América diante de tantas dívidas. R$ 850 milhões, a maior do futebol brasileiro, depois de uma festa com direito a Seedorf, Renato, Vitinho, Libertadores. Aí a tarefa de se mostrar um grande. O Botafogo mostrou. Carlos Eduardo Pereira, presidente eleito para a, talvez, maior batalha da história do clube, cansou de repetir: poderia faltar papel, caneta no escritório, mas não salário aos jogadores. O Botafogo encontrava a sua realidade para renascer. Porque, sim, parecia condenado às dívidas, longe da elite. Mas o futebol, esse esporte que insiste em desafiar a lógica e as meras calculadoras, nos faz entender que o espírito move um clube. E o espírito do Botafogo é grande. Glorioso. E está orgulhoso. 

Lógico que a estupenda campanha no segundo turno do Campeonato Brasileiro, nove vitórias nos últimos 11 jogos, perspectiva de Libertadores, é surpreendente a quem deveria apenas sobreviver a olhos comuns. Mas, lembrem-se, o Botafogo decidiu buscar um reencontro com si próprio. Não se ouve falar em atrasos de salários. Jogadores estão com sorrisos de orelha a orelha nas comemorações de gols. O time é valente, luta por cada palmo de campo. A torcida, exultante, enche a Arena Botafogo. Ah, a Arena da Ilha. A um clube que contava com Caio Martins e Engenhão, ela parecia ser desnecessária. Mas ali, com aquele alçapão à la anos 90, no pulsar da torcida, o Botafogo se reencontrou com o passado. Fez-se ser temido por adversários que o visitam. Vive, vive como nunca o Botafogo. Pulsa. Glorioso. Orgulhoso. 

Pode até ser que o time de Jair Ventura não chegue à Libertadores. O clube está em reconstrução, longe de qualquer perfeição. A dívida é grande, a tarefa é longa, o trabalho continua. Tudo verdade. Mas se reencontrar com a própria história, tornar a união torcida e time uma combustão para novos horizontes é o presente de 2016. A Série B ficou para trás. Entre os arranques de Pimpão, a batida na bola de Camilo, a segurança de Sidão e os gols sorridentes de Sassá, o clube retomou sua aura. Merecia, desde já, mais destaque do que vem arrancando a cada vitória. Condenado? Por ora, apenas a sorrir. É o orgulhoso Botafogo. 

16 de outubro de 2016


Líder com o coração

A história era conhecida no Ninho do Urubu em 2009. Túnel do vestiário do Mineirão, o Flamengo entraria em campo para enfrentar o Atlético-MG, então postulante ao título, e precisava vencer. Adriano, ícone do time, chamou todos, comissão técnica e jogadores, e, entre um e outro palavrão, berrou com o time que sempre fora campeão na vida e queria ser de novo. A cada palavra, um murro imperial no ombro de cada espectador. Quem acompanhou a cena garante que o time entrou em campo eletrizado e, por isso, engoliu o Atlético diante do Mineirão lotado. Era um time sedento por título, em plena arrancada. Encorpado por um espírito necessário para levantar taças. Com coração. 

Neste Brasileiro, o Flamengo se notabilizou na disputa pelo título não por ser implacável aos adversários, dotado de uma característica agressiva que lhes impunha respeito quase intimidador. Mas, sim, pela organização tática. Os dois pontas, a ótima saída de bola de Arão, a boa fase de Pará, o jogo que fluía. Chegou ao ápice contra o Figueirense. E parou. Contra o São Paulo, pontas presos e um time tocando bola, com campo e sem inspiração. Talvez até sem pernas, dado o cansaço físico. Mas um cansaço que cortou a atitude. Era um Flamengo, à caça do líder Palmeiras, tranquilo de que o resultado chegaria como consequência. Não chegou. Não fosse Muralha contra Chavez, a derrota poderia ter acontecido ali. Foi só adiada. 

Após encurtar a distância na briga, o Flamengo voltou a campo em condições parecidas contra o São Paulo. Fora de casa, contra um grande clube que tem um time pobre de ideias e na luta contra o rebaixamento. De novo, o time de Zé Ricardo apresentou guarda baixa. Teve campo cedido pelo Inter, apesar dos lados marcados. Mas teve, de novo, lentidão. Trocava passes como se o jogo fosse durar dois dias e o gol fosse questão de tempo. Não parecia, ali, ser um time capaz de assumir a liderança na rodada. Apático, saiu na frente com Rever. E, inexplicavelmente, desmoronou. Cedeu à vontade do Inter de não se entregar em casa diante de um desafiante do título. Viu a distância para o Palmeiras aumentar. Um rival que mostra o coração. 

Assim como o próprio Flamengo, o líder paulista encarou seu momento de declínios físico e tático. Passou sufoco, teve embates duros contra Grêmio e Corinthians, ambos fora de casa, e não perdeu. Segurou o momento pela crina, mostrou energia, ainda que o bom desempenho tenha ficado em segundo plano. Muitas vezes é o diferencial para ser líder. Para ser campeão. Ter casca, aguentar pancadas da sequência da tabela, com desfalques e pressões que só fazem aumentar na reta final. Ouvir um berro. O Palmeiras, há 22 anos sem um título brasileiro, entra em campo sedento por uma vitória. Sabe que não basta esperar o tempo passar. Precisa tomar os minutos a seu favor. Briga, vê Zé Roberto se estirar no chão, de peito, para evitar o gol adversário. Gana. Coração. É o que o torna líder e favorito nesta reta final de Brasileiro. 

7 de outubro de 2016

Sobre gerações e o debate míope

Bastou um primeiro tempo com quatro gols sobre a Bolívia para a discussão voltar à tona. Em pauta a geração do futebol brasileiro. Ódios e paixões. Ironias sobre quem acha a safra ruim. Piadas com quem classifica a geração como ótima. Entre lá e cá, a discussão não encontra seu meio termo e se envolve de incrível miopia em tempos em que polarizações e radicalismos voltaram à moda. Todos têm um pouco de razão. A discussão, atualmente, é míope. 

A safra que Tite tem em mãos não é mais a que gerou debate, amor e ódio por bares, tvs, redações e redes sociais brasileiras. Afirmar que Philippe Coutinho, Neymar, Marquinhos, Gabriel Jesus são de ótimo nível e capazes de formar, nas mãos de um bom técnico, uma seleção capaz de ser extremamente competitiva é sentar em cima do óbvio. Analisar que todos estes nomes, embora com potencial, ainda estão aquém do alto padrão clássico do futebol brasileiro também está longe de residir no absurdo. Mas voltemos no tempo.

A raiz da discussão está na entressafra da última década. Entre ciclos de Copas do Mundo, torcedor e crítica brasileiros jamais haviam enfrentado um período sem um elo entre os craques. Havia sempre uma ponte em alto nível. Depois de Romário, Ronaldo começou a abraçar o mundo entre 1994 e 1998 na companhia de Cafu, Roberto Carlos e Rivaldo. Protagonistas no futebol mundial. Três finais de Copa do Mundo, conquistas por clubes europeus, referências técnicas. Geração do mais alto nível que ganhou, até seu derradeiro fim em 2006, as companhias de Kaká, Ronaldinho e Adriano. 

Três craques e protagonistas que, por diversos motivos, deixaram a função de elo antes do fim do ciclo natural de uma carreira. O futebol brasileiro se viu só entre 2006 e 2010. Criou-se a imagem de que a geração a seguir já não acompanhava o alto padrão. E, de fato, tinha dificuldades. Afonso Alves, Grafite, Doni, Júlio Baptista. Bons jogadores, com importância relativa em seus clubes. Mas, de fato, abaixo de um padrão histórico. 

Kaká, já num ostracismo insistente no Real Madrid, figurava na competitiva seleção de Dunga diante de falta de opções. Robinho, coadjuvante em clubes internacionais, também ganhava holofote com a camisa amarela. Esforçaram-se, mas estavam longe de serem protagonistas que pavimentassem o futuro para novos valores. Neymar era um astro em plano nacional, com a camisa do Santos, sem cancha para assumir qualquer papel na seleção. Philippe Coutinho, tímido, começava uma trajetória na Europa. Gabriel Jesus engatinhava pela base. Sem individualidades brilhantes, a seleção brasileira principal carecia de melhor trabalho tático e, coletivamente, fracassava. Por não ter um técnico tão bom. Por não ter uma geração imponente. O sarrafo brasileiro era mais alto. 

Não se tratava de uma questão de idade. Neymar, precoce, assumiu o protagonismo a fórceps após 2010. Foi alçado a um patamar ainda cru. Mas não tinha opção ou suporte. E a crítica ganhou o seu auge no 7 a 1 diante da Alemanha. Um time com média de 27,6 anos. Eliminação vexatória. Críticas. Sim, a geração estava aquém de quem esperava uma linha sucessória do mesmo nível. Era apenas boa. Certamente longe de ser candidata a título mesmo em seus melhores dias. Obviamente aquém de um 7 a 1 se bem treinada. Surgiu, então, a miopia na discussão. 

A diferença de média de idade entre o time do 7 a 1, à sua época com 27,6 anos, e a escalação que goleou a Bolívia nesta quarta, com 26,7 anos, nem é tão grande. Mas o Brasil de Tite hoje é mais bem treinado e tem garotos mais maturados no alto nível do futebol europeu. Coutinho e Neymar. Gabriel Jesus, espetacular no futebol brasileiro, de malas prontas para desembarcar sob as asas de Guardiola em Manchester. São inegavelmente melhores do que Maicon, Luiz Gustavo, Hulk, Dante e companhia. São de uma geração posterior. E melhor. Vangloriar a nova turma para responder críticas feitas a outra é tornar míope a discussão sobre gerações. Nem tanto lá, nem tanto cá.  

27 de setembro de 2016


Cuca pode mais

Cuca é um técnico que gosta de trocar ideias. Absorver o que está ao seu redor. Não só de jogadores e dirigentes. Gosta de trocar ideias, também, com jornalistas. Saber o que pensam dele, do futebol. Passar o que pensa. E sentir o ambiente ao seu redor. Por isso parece ser tão cismado. Preocupa-se. Ofende-se. Alegra-se. E é inquieto. Prezava, sempre, pelo futebol bem jogado, de pé em pé. Tabelas, triangulações, troca de posições,gols bonitos. Apresentou a todos uma característica. Por isso surgiram as críticas ao recente gosto excessivo pela bola alçada na área pelo seu Palmeiras. Líder com todos os méritos. Mas um líder que já fez mais. Mudou mais. Com a característica do técnico. Daí as críticas ao futebol praticado recentemente pelo primeiro colocado. Cuca pode mais. 

E sempre quis mais. Acompanhei o técnico de perto durante sua passagem pelo Botafogo, há uma década. Alexi Stival já tinha renome graças à campanha que milagrosamente salvou o Goiás de um rebaixamento virtual em 2003 e ao São Paulo semifinalista da Libertadores, em 2004. Já no Botafogo de 2006, Cuca carregava orgulho e amargura pelo trabalho no Tricolor Paulista. Orgulho por ver o time que iniciara a montagem ter conquistado a Libertadores e o Mundial de 2005. Sentia-se parte do sucesso. Amargura por ter deixado o clube logo após a eliminação da Libertadores, com um gol no fim da partida contra o Once Caldas. "Eu já pensava nos pênaltis. E, de repente, aquela bola entrou. Mudou tudo", cheguei a ouvi-lo alguma vez sobre a passagem pelo São Paulo. Cuca sabia que podia mais. Queria aliar plasticidade a competitividade. No Botafogo, quis mostrar que conseguia. 

Chegou em 2006 e passou a lapidar o time para o ano seguinte. O gosto pela bola parada e alçada na área já existia. Ele mesmo cobrava os escanteios nos treinos em Caio Martins. Indicava o posicionamento de atacantes como Reinaldo e Wando. Realizava a batida que pedia nos jogos. E pedia, também, jogo bonito, com troca de passes. Maroto, aproximava-se dos jornalistas após um coletivo e, sorrindo, perguntava o que tinham achado do treino. Se alguém titubeava, ele emendava: "Não assistiu e depois vai lá com canetinha...". E indicava como pensava os jogos. Certa vez sentei ao seu lado no fim de um treino, na véspera de um jogo do Botafogo com o Santos de Vanderlei Luxemburgo no Maracanã. Era duelo importante pelo Brasileiro. Cuca perguntou o que achava do jogo. Entre um e outro pensamento, ele detalhou como pensava que seria. 

"Se o Vanderlei puxar o Zé Roberto para a direita e manter o Tabata pelo meio, trago o Reinaldo mais centralizado e libero o Claiton por ali", disse, indicando com o dedo para o campo vazio de Caio Martins. 

Depois deu mais duas ou três opções de posicionamento dos jogadores como resposta às possíveis mexidas de Vanderlei Luxemburgo. No dia seguinte, o pensamento de Cuca se materializou no gramado do Maracanã. O jogo se desenhara como ele previra, num belo duelo tático. O Botafogo venceu por 4 a 3, de virada. Cuca era só sorrisos. Sabia que podia bater um dos técnicos mais renomados do país, Luxemburgo. Sabia que podia mais. Preocupava-se com a plasticidade do jogo. E pensava já em 2007. Olhava o mercado. No fim de 2006, apresentou Jorge Henrique, ainda desconhecido depois de passagem pelo Santa Cruz. 

"Vai ter sucesso na carreira. É um touro, ataca, marca, faz o que pedir. Temos Dodô, Zé Roberto. O time vai jogar bonito, você vai ver", dizia, com um sorriso. 

E fez. O Botafogo de 2007 de Cuca encantou o país. Claro, havia a jogada cruzada na área para uma casquinha de cabeça na primeira trave e o arremate do atacante na segunda. Era uma arma. Não a arma. A regra era a abundância de troca de passes, triangulações, boas infiltrações. Zé Roberto, Dodô, Lucio Flavio, Jorge Henrique. Luciano Almeida, o lateral-esquerdo que era zagueiro. Leandro Guerreiro fez golaço. Mas o Botafogo não conquistou o Brasileiro depois de ameaçar disputá-lo com o São Paulo. Cuca saiu e voltou ao clube. Os times do Botafogo jogavam bonito, mas não conquistaram nada. O técnico sentiu o peso que pareceu ter carregado até levantar a Libertadores pelo Atlético-MG, em 2013. Um time que usava o arremesso de lateral na área, a bola área, mas também prezava o jogo de grande movimentação. Tinha Ronaldinho, Tardelli e Bernard. Cuca dava mais ao Galo. 

No retorno ao Brasil neste ano era isso que se esperava de Cuca. Mais. Em um futebol tão engessado tática e tecnicamente, ele era visto como um sopro de renovação por torcedores e imprensa. O Cuca inquieto, dos tempos de Botafogo e Atlético Mineiro. Em busca de soluções para furar defesas. Triangulações, jogo bonito. A antítese de um Palmeiras que era campeão da Copa do Brasil, mas se incomodava com o jogo pobre proporcionado por Marcelo Oliveira. Chuveirinho, bola na área. Cuca chegou e trouxe o impacto. O Palmeiras, claro, mudou. Melhorou. Com a bola no chão. Encorpou, tornou-se mais competitivo. 

Gabriel Jesus fulminante no início do Brasileiro. Time rápido. Mas então líder, com números a favor, o jogo decaiu. Em apuros passou a buscar o lançamento na área pelos lados ou pela intermediária. O arremesso de lateral. E foi criticado. Porque é exatamente o contrário do que se espera de Cuca. Aquele técnico inquieto, que imaginava o jogo adversário e mudava o posicionamento do time para contragolpear bloqueios dos rivais. De pé em pé. Uma contribuição ao futebol brasileiro. O Palmeiras é líder incontestável. Mas pode ir além. Principalmente com elenco que tem. Mina, Victor Hugo, Moisés, Dudu, Gabriel Jesus. E pelo seu técnico. Sim, Cuca. Por todos os trabalhos que fez. Por Botafogo, Cruzeiro, Atlético-MG. Por ele próprio. Cuca pode muito mais. 

   

18 de setembro de 2016



                                     
                                          
O tal de Zé

"O tal do Zé". Era mais do que comum ouvir a frase assim que o técnico deixou o comando do time sub-20 do Flamengo para assumir os profissionais diante do problema de saúde de Muricy Ramalho. Zé Ricardo assumiu sob a tradicional desconfiança de quem nunca treinou um time principal. Levava na bagagem bons trabalhos nas categorias de base, o adjetivo de "moderno" e a expectativa de transformar em time um elenco com bons valores. Fez mais. Não apenas organizou um time de futebol. Zé Ricardo mudou o perfil do Flamengo em campo. 

Bobagem? Voltemos no tempo quase um ano. Era o Flamengo de Oswaldo de Oliveira, de bons valores como Cirino, Alan Patrick, Everton. Mas havia o tal Bonde da Stella. A alternância entre jogos bons e ruins. Um Flamengo que deixava o torcedor sem saber o que esperar. Que cheirava, às vezes, a descompromisso. Andemos novamente no tempo e retornemos ao presente. Na vitória de 2 a 0 sobre o Figueirense no Pacaembu, neste domingo. A melhor atuação do time rubro-negro, talvez, em anos. 

Ampla troca de passes, de pé em pé, o jogo que girava diante de um adversário que, sabidamente, se fecharia para tentar tirar o Flamengo do sério. Não tirou. O Flamengo de Zé Ricardo não sai do sério. Encaixado, troca passes pelo meio, busca o jogo pelas pontas, preza o bom jogo. Sabe quando atacar, sabe quando defender. É um padrão. São jogadores determinados a cumprir o que lhes é encomendado em treinos e no vestiário. Outro perfil. Mais profissional, mais competitivo. Mais do que as vitórias, o espírito do time de Zé Ricardo é o que gera mais admiração. O Flamengo pode perder, claro. Mas perderá de forma organizada, para um adversário que terá méritos. Culpa do Zé. Um técnico que espelha o seu time. 

É difícil vê-lo sorrindo. Parece tão concentrado no que fazer na área técnica e no que dizer em entrevistas que não sobra espaço para uma descontração. Seriedade em pessoa. Obviamente que a característica é absorvida pelo elenco. Um grupo que foi reforçado. Zé ganhou Damião, Diego, Donatti, Rever, Rafael Vaz. Não só isso explica o belo trabalho. Não por ter um elenco mais qualificado. Mas por organizá-lo e torná-lo eficiente. E recuperar jogadores. Pará joga o fino sob a batuta de Zé. Gabriel transformou-se em jogador útil, ciente de sua função. Fernandinho, vejam, foi decisivo por três jogos consecutivos. E não entrou no quarto. Outro acerto de Zé Ricardo. 

Não bastam a boas ideias e o entendimento tático. É preciso saber controlar egos e insatisfações. Imagine para Juan, duas Copas do Mundo no currículo, ficar fora para Rafael Vaz? Guerrero, artilheiro da seleção peruana e reforço badalado, segurar um banco para Leandro Damião? Mancuello, querido pela torcida e contratado para jogar, entender que nem sempre é hora de estar no campo? Pois Zé Ricardo, sem grife, conseguiu. Vendeu a ideia de grupo. Não se vê um jogador emburrado no banco, um veneno escorrendo em rodinhas e parando em jornais ou sites. Há o que parece ser uma alegria genuína de, enfim, ver resultados em um elenco que foi justamente criticado durante o ano. É um senhor mérito de Zé Ricardo. Um técnico em plena maturação. 

Desde que estreou contra a Ponte Preta na quarta rodada do Brasileiro, ele tenta afinar o padrão do seu time. Já jogou mal e conseguiu a vitória. Por vezes jogou bem melhor do que o adversário em grande parte do jogo e deixou o campo derrotado, como diante do Corinthians. É um processo de maturação. O tempo para trabalho tão decantado por cronistas e que ganha corpo em alguns dirigentes. O Flamengo está em ascensão. É regular, tem o seu sistema, o seu objetivo. O torcedor sabe o que esperar. O que se viu diante do Figueirense, ainda que um adversário da parte de baixo da tabela, foi de encher os olhos. 65% de posse de bola, 23 finalizações, mais de 400 passes certos. 2 a 0 foi pouco. O técnico sabe. Delicadamente, deixou isso claro na entrevista. Entende o jogo. E não utiliza o jogar para a galera. Sério. Candidato ao título, o Flamengo mudou de perfil. E deve evoluir mais. Tudo por um trabalho. De um tal de Zé. 

27 de maio de 2016



Há 15 anos

Há quem não tenha fechado a boca até hoje. Há quem ainda prenda a respiração. Há quem ainda torça para a bola não entrar. Há quem diga que já sabia que ela iria, sim, entrar. Há quem esteja paralisado, incrédulo, até agora. Há quem agradeça sempre pelo gol de Petkovic naquele fim de tarde no Maracanã, em 21 de maio de 2001. Mas não há um fã de futebol que não reconheça que o esporte apresentou toda sua magia ali, em cores vivas, no chute certeiro do sérvio aos 43 minutos do segundo tempo diante do Vasco. Às vezes, bastam pouco mais de dois segundos, o tempo em que a bola sente o golpe da chuteira direita de Petkovic até raspar nos dedos esquerdos de Helton, centímetros abaixo da baliza superior esquerda do gol vascaíno. Há como construir idolatria. Há como se fazer História, com H maiúsculo.

O tempo passou e ainda assim há quem duvide de que aquele lance foi obra dos deuses da bola. Há, acredite, quem duvide inclusive dos próprios deuses da bola. Há poucos momentos históricos no mundo da bola como o realizado por Petkovic. Por diversos ângulos, em diferentes momentos, o gol do tricampeonato carioca do Flamengo em 2001, há diversas interpretações. Há entre o trajeto da bola e o urro da arquibancada sempre uma história, uma curiosidade. Há um choro. Há uma reza. Há quem estava no Maracanã e agora não saiba dizer onde, de fato, estava. Há quem não esteve e jure de pés juntos sentava na arquibancada e ainda sussurou o gol, baixinho, para si mesmo.

Há gol que nunca acabe na alegria imensa do torcedor rubro-negro ou no desgosto profundo do torcedor vascaíno. Dejan Petkovic era até ali mais um estrangeiro com a camisa do Flamengo. Mas resolveu, então, tomar emprestada a alma de Zico aos 43 minutos do segundo tempo e cravar com letras garrafais seu nome, ou melhor, seu apelido, Pet, simples como uma nação, na história do clube. Há, ainda, quem duvide que o autor de tamanho feito possa ser ídolo. Tolice.

O gol de Petkovic naquela tarde carioca mudou rumos, escreveu novos caminhos e virou símbolo para uma geração. Há quem acredite que Fabiano Eller não cometeu falta em Edilson. Há quem diga que a falta foi clara. Há quem diga que foi sorte. Há quem diga que foi destino. Mas o que há, é o fato de que o universo rubro-negra ganhou um de seus mais épicos capítulos com a velocidade com que a bola de Petkovic alcançou o gol vascaíno, sacramentando o tri. Há, sim, quem duvide disso. Mas não há, mesmo, como duvidar. Pois a magia do futebol foi exibida com imagens claras a milhões de espectadores, estivessem no Maracanã ou não. Há 15 anos.

19 de janeiro de 2016

                              Reprodução


Isso aí não é o "Framengo"

Não foi um alarde sem sentido. Não é algo menor. Não foi o simples grito de "Framengo" que ofendeu a torcida rubro-negra no vídeo promocional da terceira camisa. O problema reside em quem transmitiu a mensagem: um personagem mascarado de um site responsável por debochar constantemente do clube. Ninguém sorri para seu detrator. O passo foi mal calculado. Pegou mal. 

A implicância da grande maioria da torcida com o vídeo passa ao largo do preconceito. O rubro-negro, em geral, mostra orgulho de ser popular, de ter torcedores em comunidades. Taí o grito "festa na favela", cantado aos berros no Maracanã em bons momentos da equipe, que não deixa dúvidas. Ainda que "Framengo" seja utilizado por torcidas rivais em tom de deboche com o caráter popular da massa rubro-negra, a mágoa residiu em estender um tapete vermelho para quem debocha do clube. 

Humor no futebol é fundamental. Deboche, mais ainda. Mas não é necessário o autoflagelo, com o aval de quem deveria zelar pela própria imagem e entender seus torcedores, os donos da paixão. Ao lançar o roteiro surrealista com direito a mascarado gritando "Framengo", Nego do Borel com passe livre na sede e roubo de camisa de museu, a Adidas e o clube arriscaram demais. O "Framengo" foi apenas a cereja do bolo, como seria um "Vice" com o Vasco, "Gambá" com Corinthians, por exemplo. O impedimento do mascarado era necessário. A polêmica não é perda de tempo, nem preconceituosa. A caravana passa e a camisa - bela, por sinal - voará alto nas vendas como o urubu do vídeo. Mas isso aí não foi só o "Framengo".