8 de dezembro de 2016


O técnico, o personagem Renato e a ferida aberta

1995. Um dia após o histórico gol de barriga na final do Carioca, Renato Gaúcho topa o desafio. Veste o manto, pega o cetro e põe a coroa sobre a cabeça. Literalmente, vestido de Rei diante de lentes de um jornal carioca. O Rei do Rio, posto disputado em briga midiática com Romário, do Flamengo, e Túlio, do Botafogo, que teve caráter épico mesmo em tempos sem internet e redes sociais. Era o auge do personagem fanfarrão de Renato Portaluppi. 

2008. Vasco em meio à maior crise da história, lutando contra uma luta quase perdida contra rebaixamento no Brasileiro. Em uma manhã no Vasco-Barra, o técnico Renato Gaúcho conversa com um fisiologista, que tem um papel em mãos. Ali, listados, os pesos dos jogadores. Edmundo, craque da companhia, tinha três quilos a mais do ideal. Outros jogadores contavam peso a menos. Renato termina a conversa, reúne o grupo no gramado e, nervoso e com muitos gestos, cobra o cuidado com o corpo, explica o impacto no desempenho da equipe. Até Edmundo, antes revoltado ao exibir a barriga a todos da comissão técnica, ouvia calado. Era o técnico Renato, preocupado com detalhes da profissão pós-jogador. 

2016. O personagem fanfarrão se une novamente ao técnico com a conquista da Copa do Brasil. "Futebol é como andar  de bicileta. Não se desaprende. Quem não sabe, tem de estudar e ir para a Europa mesmo", alfineta. O caos está instaurado. Renato, ao seu estilo, deu o recado que gostaria. Reação a uma ação. E reabre a ferida que causa melindres no futebol brasileiro. Estudiosos versus boleiros. Conhecimento versus desprezo pela qualificação. O empobrecimento do debate. Um mau exemplo para o dia a dia dos brasileiros. Renato não é Guardiola e nem se propõe a ser. Tem seu estilo, sua maneira de entender e lidar com o futebol. Rema contra a maré vigente num panorama em que técnicos medalhões perdem espaço para novos nomes. É a troca de um ciclo. Por isso, vê-lo levantar um título causa rusgas. Não é certo, nem errado. Apenas uma das várias maneiras de entender futebol. 

O título de Renato, o Portaluppi, com o Grêmio escancara o debate no futebol brasileiro não apenas pela provocação. Ídolo e por mais de dois anos longe da área técnica, ele substituiu Roger, um dos nomes que mais ventilam novidades no futebol brasileiro e que carrega o adjetivo de "o estudioso". Foi o contraponto imediato. Tem gosto pelo papo com os jogadores, faz mais o estilo boleirão. E o time gremista, que já apresentava sinais de desgaste, melhorou. Mesmo com um boleiro após o estudioso. Renato, inteligente, fez ajustes finos, manteve boa parte do trabalho de Roger. É um time mais forte do que era na defesa, mais incisivo no momento de buscar o gol, mas mantém a troca de passes, a paciência no entorno da área adversária. Controlou o grupo, recuperou jogadores. É um mérito. E, uma vez mais, derruba a tese de um caminho único no futebol. 

Mas a venda de imagem de Renato como um simples motorista que já pegou o bonde andando e o tocou para a taça mesmo sem ter qualidade ou ser capacitado para tal o incomodou. As críticas de um técnico que passou o tempo na praia, também. Daí a reação fanfarrona de Renato. É o jeito dele. De quem já disse que iria brincar no Brasileiro. De quem disse que jogou mais do que Cristiano Ronaldo. 

Renato é um dos últimos românticos de um futebol brasileiro que mora no ideal de uma geração de torcedores. Gosta dessa imagem. Entende como estilo de vida, se propõe como um símbolo. É da época de provocações, não das frases sobre três pontos e elogios mútuos blindados por assessores. Mas é inteligente. Se nutrisse tanto desprezo por estudo e análise no futebol talvez destruísse o trabalho de Roger por completo. Não o fez. Manteve parte, acrescentou suas ideias. Fez do Grêmio campeão nacional depois de 15 anos. Aproveitou o momento, tocou na ferida e se manteve fiel à própria biografia. Usou o personagem. E sabe que há espaço para todos. Mais de 20 anos depois, Renato novamente vestiu a fantasia de Rei. Para chegar à taça, obviamente mostrou a faceta de um técnico que se preocupa até com o peso dos jogadores. Provocou e se divertiu. Foi técnico. Foi campeão. Foi o personagem Renato Gaúcho. 

1 de dezembro de 2016


De Medellín a Chapecó, a materialização do clichê

Não é só futebol. As luzes na arquibancada do estádio Atanasio Girardot inflaram o sentimento que varreu o continente sul-americano diante de uma tragédia que sufocou gargantas e provocou lágrimas coletivas como em raras ocasiões. O abraço dado pelo Atlético Nacional e sua torcida é daqueles maternais, de quem diz que está tudo bem e nada vai acontecer. Afagos fazem bem para suprimir a dor. Em Medellín e Chapecó, o futebol transbordou fronteiras para nos desarmar. 

Somos o que pretendemos ser. Quem buscamos ser. A linda cerimônia dos colombianos indicou que podemos, sim, sermos solidários. Sermos bons, mesmo. Importarmo-nos uns com os outros. Ignorarmos diferenças. Adversários não são inimigos. Foi o que espelhou o futebol em uma semana que começou com a alegria do título do Palmeiras depois de 22 anos, presenciada pela própria Chapecoense, e seguiu com a perda de tantos sonhos e histórias em uma montanha colombiana. Na dor, o futebol seduziu até quem não liga para o esporte. Instigou lágrimas e reflexões. Não é só futebol.

Em Chapecó, não é mesmo. O clube se confunde com a cidade e torna a relação entre jogadores e cidadãos mais intimista. O sofrimento de perdê-los de forma tão trágica parece ser maior. A Arena Condá, de novo, vestiu-se de verde para homenagear quem tanto a honrou. Em Medellín, o laço de solidariedade pareceu se completar. Um povo distante que abraçou a dor como sua. Homenageou mortos como seus. Palavras afagaram, gestos emocionaram. E a barreira da linguagem se dissipou com o coro de "Vamos, vamos, Chape!" ecoado em uma arquibancada colombiana, que encharcou o gramado de flores brancas. Não é preciso final alguma. Não é preciso entender regras. Na mais bela homenagem do esporte, o Atlético Nacional e sua torcida tiveram sua mais grandiosa conquista. Amenizaram dores. Afagaram corações. Materializam o velho clichê. Não, não é só futebol. Gracias, Colômbia.