1 de fevereiro de 2017

No conforto de seus volantes, um Fla com jogo amadurecido

Quando Zé Ricardo não cansou de elogiar Márcio Araújo em entrevistas, no fim de 2016, despertou a fúria da torcida rubro-negra. Mas era natural que defendesse um jogador querido pelo grupo e importante para a campanha do Brasileiro. Neste início de 2017, no campo, o técnico apontou o caminho que deseja trilhar no Flamengo. Se a goleada sobre o Boavista na estreia do Carioca deu indícios de um Zé Ricardo mais livre com seus pensamentos, a boa vitória na segunda rodada, por 3 a 0, sobre o Macaé, em Volta Redonda, indicou um Flamengo que deixa de priorizar os pontas, abraça o meio de campo com seus volantes e fica mais confortável com sua ideia de jogo. A principal cartilha de 2016 parece ficar no passado. 

Quase desnecessário dizer que a diferença técnica entre Rômulo e Márcio Araújo é gritante. Vigor e força foram substituídos por bom posicionamento e qualidade no passe. No segundo jogo do ano, Rômulo e Arão se entenderam melhor sobre saída e cobertura. Mancuello não mais estava fora de jogo. Pelo contrário. Caiu mais para o meio, deixando brecha para Pará passar explorar a ponta direita, além de cobrar faltas e escanteios. Assim, o Flamengo atacava com Guerrero e quatro jogadores às suas costas: Everton, Diego, Arão (ou Rômulo) e Mancuello. E o time girava a bola, buscava o passe, tentava esperar uma desatenção do inofensivo Macaé para encaixar uma infiltração. A primeira ocorreu em impedimento mal marcado, em que Everton rolou para Guerrero, que chegou a driblar o goleiro, nas costas da defesa. Eram sinais claros de que o 4-2-3-1 e seus pontinhas de 2016 estavam em baixa.

Na ideia de jogo de Zé Ricardo, os volantes têm prioridade. Giravam a bola e contavam com os auxílios luxuosos de Everton, bem mais combativo e ofensivo do que Adryan, e Mancuello, deixando os lados e caindo pelo meio, abrindo espaços para os laterais avançarem ao ataque. Assim, Trauco recebeu de Diego dentro da área e rolou de volta para o meia, que dividiu a bola com Aislan. O próprio Diego cobrou com categoria o pênalti assinalado pelo árbitro. 1 a 0. Um Flamengo mais solto no placar e no campo. 

A vantagem permitiu ao time aumentar a movimentação e as trocas rápidas de passes, característica que chegou a aparecer em alguns de 2016, como contra o Figueirense. Não tardou o Macaé a bater cabeça. Aí o mérito da aposta de Zé Ricardo em dois volantes técnicos para construção do jogo. Rômulo, do lado esquerdo do meio de campo, infiltrou bola preciosa para Guerrero na grande área, pela direita, mas o peruano chutou em cima de Milton Raphael. Logo em seguida, Arão, no lado direito, achou Mancuello livre na área. O argentino, caprichosamente, bateu rente à trave direita do goleiro. Era um Flamengo superior, com calma, ciente do que precisava e do pedido de Zé Ricardo. Girar, trocar passes no meio e também arriscar na hora certa. No intervalo, a torcida estava satisfeita não com o placar. O desempenho é que deveria ser comemorado. 

No segundo tempo, de cara um defeito do time foi transformado em virtude. Com um minuto, Arão perdeu a bola no meio de campo, mas Rafael Vaz se antecipou ao contra-ataque e, de primeira, lançou Mancuello na direita. O argentino cortou para dentro e cruzou com capricho para Guerrero. Antes, porém, Aislan mandou para a própria rede. 2 a 0. Estava fácil. Quatro minutos depois, Everton caiu de novo para o meio, tabelou com Guerrero, pivô na entrada da área, e lançou para Mancuello, de novo no ataque, na direita. 

O argentino teve calma e rolou para Willian Arão tocar para o fundo da rede do Macaé. 3 a 0. Fatura liquidada. E ainda assim o Flamengo continuava a pressionar, apresentava alternativas. Trauco trocou com Everton e caiu para o meio. O camisa 22 explorou o lado esquerdo vazio e entrou na área para finalizar forte, mas Milton Raphael evitou o quarto gol. Em seguida, Zé Ricardo  mostrou que a cartilha de 2016 estava mesmo no passado. Cuellar, pouco utilizado na última temporada, entrou na vaga de Mancuello. Márcio Araújo continuou no banco. Arão foi adiantado e a troca de passes entre Rômulo, Cuellar, Mancuello e Diego continuou. O ritmo só diminuiu depois da expulsão boba de Everton. Rodinei entrou na vaga de Diego por uma questão de fôlego. Fim de jogo. Claro que adversários mais fortes chegarão, espaços na defesa devem ser ainda melhorados. Mas com ideias mais claras, o Flamengo lidera o Grupo B do Carioca. Um time modificado, mais maduro. E confortável com seus volantes e sua nova ideia de jogo. 

Pirâmide Invertida e a viagem pela história do futebol

Há quase um ano tracei algumas linhas para o Esporte Final sobre o exagero do tatiquês no jornalismo esportivo que causaram uma espécie de irritação generalizada em quem abraça o tema com paixão aflorada. Levei muita bordoada em redes sociais da turma especializada, ainda que tenha ocorrido uma grande confusão por parte de muitos: a crítica, ainda atual, era sobre a maneira de se comunicar, necessariamente objetiva e clara em um jornalismo que abrange diferentes públicos, e não ao estudo e entendimento da tática no futebol. Mas confusões acontecem. 

Fato é que, sim, me interesso pelo tema e desde que me tornei jornalista esportivo sempre gostei de acompanhar de perto os jogos e treinamentos - infelizmente hábito cada vez menos permitido nos clubes brasileiros - e ficar atento ao que executavam e diziam técnicos e jogadores. Estudar, buscar conhecimento nunca é demais. Ler, então, nem se fala. Por isso decidi embarcar no mais novo lançamento da Editora Grande Área, A Pirâmide Invertida, do inglês Jonathan Wilson, que aborda a história da tática no futebol. Como é um livro indicado a um nicho, me preparei, claro, para encarar expressões como as que critiquei no texto que causou alguma polêmica, ainda que sem muito sentido. Mas que nada. Ao longo de mais de 400 páginas fiquei, mesmo, encantado.

Claro que algumas expressões modernas sobre o jogo estão lá. Era inevitável. Mas o livro, repito, parece se dedicar a um nicho. Ainda assim, a tradução, realizada pelo jornalista André Kfouri, é bem clara e encarna o embalo de um verdadeiro romance não só sobre a história da tática, mas sobre o futebol em si. Acompanhar o nascimento do esporte mais popular do mundo e sua desorganizada pirâmide inicial, um 2-3-5 do final do século XIX, na Inglaterra, é interessante para qualquer apaixonado pelo esporte. Wilson faz bem o vaivém entre seleções, clubes e diferentes países, engendrando o livro de maneira que o leitor acompanha ao longo das páginas o processo de inversão da pirâmide, levando-a aos esquemas atuais com um homem na frente alimentado por vários atrás. 4-1-4-1, 4-2-3-1. No fim, como diz Guardiola no livro sobre seu primeiro ano do Bayern, são apenas números de telefone. 

Jonathan Wilson explica o porquê de o sistema tático no futebol ser um ser vivo, sempre em mutação, pronto para se adaptar às características modernas do jogo, com menos espaços, altíssima competitividade e atletas talhados para render o máximo. É uma viagem no tempo observar como tudo se encaixa, como o futebol bebeu de várias fontes para evoluir e se tornar o jogo complexo dos dias atuais. Desde os cafés de Viena, na Áustria, e seu romantismo sobre o futebol até o jogo bruto dos ingleses e sua insistência em ignorar o passe como parte fundamental do esporte. 

Natural que Wilson, britânico, mergulhe fundo no futebol local, berço do jogo moderno, e no europeu. Estão lá explicações sobre o nascimento do histórico sistema W-M, nomes como Jimmy Hogan, Viktor Maslov, o Futebol Total da Holanda de Cruyff e Rinus Michels, a força soviética e suas implicações para encaixar no jogo análises com tecnologia e estudos em laboratório. Entendemos o surgir do catenaccio italiano. E é especialmente deliciosa e rica a passagem que conta, com direito a campinhos, numerosos ao longo de toda a publicação, sobre o grande Milan do fim dos anos 80 de Arrigo Sacchi, Van Basten e Gullitt. Compreendemos o jogo com três defensores, o caminhar para o oposto da pirâmide inicial. Admiramos Louis van Gaal. E desembocamos, claro, em Guardiola e seu ápice do jogo coletivo, com fartura de passes entre Xavi, Iniesta, Messi e companhia. 

O livro, no entanto, não abraça apenas o futebol europeu. E nem poderia. Há espaço, claro, para as duas grandes escolas do futebol sul-americano, a brasileira e a argentina. O Brasil de 58 e seu 4-2-4 inovador está lá, assim como a escalada ao 4-3-3 com o formiguinha Zagallo em 1962. A maior seleção de todos os tempos, o Brasil de 70 recheado de gênios, também está reverenciada e explicada. O Flamengo de 81 e seu 4-1-4-1 (ou 4-5-1) está lá. Sob o olhar brasileiro faltaram, mesmo, um mergulho maior na história seleção de 82 e uma explicação sobre a importância do ousado Nilton Santos para o jogo dos laterais modernos. Com os hermanos, a explicação da romântica época de La Nuestra e o embate entre as doutrinas de Menotti e Billardo, dando sequência ao detalhamento do perfeccionismo, anos mais tarde, de El Loco Bielsa, um dos inspiradores de Guardiola. 

A Pirâmide Invertida é um livro para ser absorvido com calma, relendo trechos, observando os campinhos táticos e, num mundo moderno, até auxiliado de vídeos da internet. Fui buscar vídeos de Matthias Sindelar, o atacante austríaco e provável primeiro falso 9, nos anos 30. É a história do futebol romanceada e um estudo a fundo da evolução da tática. Vale muito ler. Até na praia.

Ficha:

Título: A Pirâmide Invertida - A história da tática no futebol

Autor: Jonathan Wilson

Editora: Grande Área

Preço: R$ 64,90

Páginas: 472

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